terça-feira, 27 de março de 2012

As altas torres da alegria

Por Solange Sólon Borges

...mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final. (Clarice Lispector)

Abissal. Há maneiras de dizer o quanto amo.
É facílimo deixar tudo fora do lugar quando falta seu calor em minha vida incompleta: sonhos cotidianos, prateleiras vazias, pó à volta e abandonadas xícaras de chá.As palavras enlaçam o que em mim germina.
A colheita é certa, mas tenho dúvidas sobre a facilidade das sementes em terras novíssimas diante dos velhos hábitos. Abro a janela: os girassóis espreitam-me, sobressaltados no silêncio, articulados pela luz. No verão, florescem os belos jardins.
O inverno chega estreito para que eu mergulhe em profundidades: vejo estruturas emaranhadas para que se busque a seiva íntima e seu fluxo aquecido, como fazem homem e mulher ao longo dos intermináveis milênios.
O que há de diverso nas estações do amor que circulam pelos nossos espíritos?Você cobre meu corpo como ave migradora que veio de longe conferir a intensidade das sensações. Suas asas se fecham, vigorosas sobre minha pele e sinto a pressão de rocha que busca abrir fendas nessa torrente de amor. Lúcido em seu ritmo, toca veias profundas, nessa conversa íntima da sua pele dentro da minha, tomando posse desse beijo ancestral.
No frêmito do vôo, confundem-se ímpeto e potência, chegada e partida, e luta como se esse fosse o momento único e não restasse força para uma segunda obra. Você tenta, meu amado, mas nada detém o fluxo violento, quando o universo gira veloz e nos inunda de luzes, espasmos e pétalas. Vejo-o ascender e se entrelaçar às minhas raízes, quando derrama o seu fruto.
Nessas altas torres de alegria — onde não há qualquer apoio — nos demoramos ofegantes, girando no espaço livre da felicidade, no império das grandes noites de verão.Admiro, então, seus olhos calmos. Sorri largamente e constato a metamorfose que se operou — pequena morte, grande vida — em nossos corpos encontrados.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

MOVIMENTO Nº 2

Em minha embriaguez, o mar é um oásis.
Chego mais perto de mim:
sou ainda mais profunda.

A alma foi moída por facas sem alma e lágrimas.
Peixinhos vorazes vêm morder
e espicaçar minha superfície.

Nesse silêncio perfeito,
ele está prestes a anunciar
quando se conhece o homem em suas raízes.

Sinto-me iluminada.
Que as marcas da dor são frias,
que o dorso do mar se move em intensa meditação,
que seu pêlo se eriça: é o poder exclusivo.

Amei sua musculatura.
Porque amar é tão urgente
que me ultrapassa.
É luminescência.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

BLUES

Por Solange Sólon Borges

Não sei fingir que amo pouco quando em mim ama tudo.
Vergílio Ferreira


Recebo sua imagem envolta em azul.

Mergulho onde se escondem asas,virações, horizontes que me aguardam.
O azul profundo da noite a tudo oculta sob sua pele bárbara: percebo o quanto ilumina,oscilando entre o que pulsa e emociona,entre o que nomeio divino e estilhaço,
entre o que mostra e revela:a rosa em formação.

Original: o estranho jogo de sílabas embaralhadas para que tudo tenha sentido
e precisão diante dos destroços. As palavras como testemunha.

Sua foto está lá, imutável,sem fissuras, corrosões, devastações, pressas, ervas daninhas, enquadrada para a eternidade,disciplinada pela beleza. Sol encarcerado. Rios de luz na imobilidade, semblante desfocado de anjo. Na contraluz não se vê
a aparição subterrânea do que há em mim: códigos intraduzíveis da fúria
e o útero dos relâmpagos.

A vida tem urgências... as noites queimam incontroláveis de amor.
O que temo? O desconhecido?
A profundidade dos abismos e seus alicerces corroídos?
Onde a arquitetura da paz?
A administração do caos?
É preciso que tudo doa menos. Tenho necessidades medievais
diante do peso total de um céu desesperado. Minhas pequeninas coisas do coração:
sonhos pisados, o amor que esperei e nunca veio...

Será que alguém ainda consegue me fazer algum mal depois de tudo o que vivi?

A circularidade do que é humano: o mecanismo da vida que leva
a todos para tão longe e depois os traz para tão perto em sua sincronicidade perfeita.

Por isso, seu olhar é azul e meu silêncio, blues.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

PRIMEVO

Por Solange Sólon Borges

Com carinho ilimitado, ao E.

Perdoa-me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência. Clarice Lispector

O perfume do tempo se desprende de tigelas fumegantes e comemoramos o sabor que nos espera. O fogo a tudo queima, prazeroso: legumes e ervas, indecisões e falhas. Purificação ancestral entre labaredas, onde há o etéreo e o primitivo: cascos de navios incendiados na catedral doméstica. Quando você chega à cozinha espia, alegando caça ao vinho tinto predileto e eu levito com suas excitadas delicadezas.

Meu amado constata que tudo cheira “bom” e vasculha minha pele a comparar aromas. Somos animais da pedra lascada e farejamos o reconhecimento. Zomba do meu cardápio vegetariano — macarrão com manjericão à deriva, pimentões vermelhos assados, rúcula e frutinhas cortadas em formato de estrela — pois jamais permitirei que se assole qualquer dor. No ponto, o arroz com lentilha, a mjadra que vovó ensinou, para que a prosperidade entre pela porta da frente e talvez eu descubra a que claridade afinal nós dois pertencemos.

Como posso sentir tamanha felicidade com afazeres tão banais? A luz filtrada por amplas janelas de vidro aquece o dia e nos abençoa, enquanto o fogo faz seu trabalho mítico e antigas árvores me ancoram lá fora. Pássaros cantam alegres. Os cães brincam. Minha devoção tem um peso inexplicável e quero ofertar ao meu amado apenas cortesias.

Do terraço, você pergunta se está pronto — sua voz segura inunda toda a casa — e eu respondo que sim. Sempre lhe direi sim. Estou pronta! Há uma ceia que nos chama e assim, encontrados, prepararemos a colheita com total simplicidade.

Nesse estatuto do amor, há fartura de palavras e volúpias. Então, naufraga a ponta do dedo na taça do vinho e molha meus lábios. Sou batizada. Então me beija e vê sobre a alva toalha os figos partidos lado a lado como vulvas e gargalha.

As estações em nós podem seguir agora repletas de paz.

sábado, 12 de março de 2011

TORMENTA

Por Solange Sólon Borges

Ninguém crê que tudo se incendeia habilmente, depois de
sermos batidos pelo temporal. Há a necessária compensação
de forças entre amores - luxúria, urgências, cobiça e fé -
corpos desnudos com seus desejos encarcerados para que as
muralhas cedam, afinal. E eles querem partir, eles querem
partir dos corpos celestes, mas não podem:
há o homem e há a fera.
Chegam os ferreiros batendo estacas sobre o peito:
miasmas inundam os dias. O coração se reveste em pátina. O
amor é premente e peço as sementes: comem o figo.
Encontro vestígios de magma em minha pele bárbara.
São os pormenores da tormenta: sua face se dissolve na
lembrança e peço uma foto como se lhe pedisse qualquer
rosto ou mesmo alma. A ausência ressuscita Pan em meio
ao pânico. Mostrou-me o tango de seu corpo bailando sobre o
meu no momento da submersão.
Tenho cios crônicos.
Ata-me onde encontrar a fera e imagine a minha total
fragilidade em seu retorno.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

PRIMAVERA

por Solange Sólon Borges

Quem falou de primavera sem ter visto o teu sorriso,
falou sem saber o que era...
Cecília Meireles


Ele faz perguntas intensas: você me amará sempre? Será minha? A primavera é a clara estação das músicas longínquas. As cigarras cantam arranjos rítmicos e nos achamos imortais nessa hora multicor... Quando é primavera, chove demais em mim e floresço, pois há jardins repletos de ternuras e juncais.

O que é o homem? O que é a mulher se não um sol de delicadezas cujos dons e sorrisos são a fluência da felicidade? Há sempre flores e estrelas a mais nas mãos do meu amado, pois sabe o quanto preciso sentir a vida pulsando transparente. Os teares da primavera tecem perfumes com fios arcaicos... Por isso, minha linguagem tem febres e flutuo em cítricos desejos.

Você me dá uma pequenina caixa de presente que desembrulharei depois, pois quero sentir o tremor da espera e da surpresa. Porque amor é hipnose. Sabe o quanto gosto dos objetos minúsculos que encerram mundos: “as estrelas não temem parecer vaga-lumes”, alertava Tagore. E passo então tardes inteiras desenhando brevidades e canteiros, pois plena de amor a tudo vejo com clarividência, inclusive os vaga-lumes.

A vida é mágica entre heras vigorosas. Tudo o que plantei brota nessa metáfora de mudança assombrosa: as flores saltam para a luz tecendo delicados bordados adejados por asas coloridas. Os girassóis se abrem por inteiro e posso respirar cores vibrantes e o cheiro da terra que sobe ávido após a chuva rápida que a tudo encharca. Meus desejos são caudalosos e nos reconhecemos por aromas e olhares, fundamentos que entregamos um ao outro para que não haja dúvidas e pontes. Os arredores ensolarados do seu corpo traçam retas seguras dentro do círculo perfeito onde me abrigo. Quero adormecer após o movimento cíclico das ondas do amor. E esse privilégio não é meu, é nosso.

Onde há o peso da vida — mar e rochedo — meu amado me dá leveza como ossos de borboleta. Fincamos plenas raízes.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

AS CONFIGURAÇÕES DO FOGO

Por Solange Sólon Borges

As pétalas caem quando arde o fim do dia,
Quando submerge em meu corpo desnudo
Procurando a profundidade de si mesmo,
Quando crispa seus dedos e seus olhos
Como se aranhas ocultas o enredassem.

As pétalas caem delicadamente em seu dorso
Quando delira em pleno gozo.
As pétalas caem quando se resume ao que é:
Apenas um homem em busca de raízes e sementes.
Um anjo de asas partidas, incompleto, exigente,
Incontrolável porque tocam os ângelus,
Porque os campos parecem frios,
Mas seu corpo é incandescente.

As pétalas caem quando suas palavras
Estão imbuídas de sentimentos e pecados,
Porque o espírito límpido enfim se acalma
Em outra vida, em outra pele.

As pétalas caem para que tenha mais asas
E alcance seus sonhos com a intensidade necessária.
As pétalas caem para que se encontre
O que é belo e distante, o que parece fragilizado
Sob o Sol, mas que resiste.

As pétalas caem porque também se emocionam.
E a emoção é pura entrega.
O fogo consumido do fogo.
Hoje beijo seus olhos e derramo pétalas em seu dorso
Para que se torne alado,
Para que sinta a reverberação do amor e
A floração das rosas prostradas diante da primavera.

Enfeito-o de pétalas
Para que não se sinta deserto ou inocente,
Para que mereça o repouso
Depois de ter chegado
Ao ponto mais profundo do corpo,
O ponto mais próximo da alma.
São mistérios gozosos da natureza
Saber por que as pétalas caem,
Mas elas se entregam— totalmente nuas —
e não se consomem
em meio às chamas.